Casos de discriminação têm sido frequentes em escolas de SP, como o Porto Seguro em Valinhos, e em outras partes do Brasil. ‘A ignorância é parceira dessas manifestações criminosas’, afirma Angela Soligo.
Por Patrícia Teixeira, g1 Campinas e Região
A expulsão de oito alunos da escola de elite Porto Seguro em Valinhos (SP) após registros de apologia a racismo e nazismo em um grupo de WhatsApp e outros casos semelhantes em unidades de ensino pelo país acenderam a discussão: o que acontece com estudantes e professores que cometem essas violências? Em que momento fatos históricos deixaram de ter a devida relevância na cultura deles?
Em busca desses esclarecimentos, o g1 conversou com a doutora em psicologia e docente da pós-graduação da Unicamp Angela Soligo, que apontou de maneira cirúrgica fatos que podem, sim, ter contribuído com uma sucessão de atos criminosos disfarçados de liberdade de expressão.
“Uma coisa é liberdade de expressão, e outra é incitação da violência e cometer crimes, ainda que verbais. Apologia ao racismo, nazismo, violência contra mulheres, oposições homofóbicas. Você está em um outro campo que não é o da liberdade de expressão. Todos esses elementos são vedados pela Constituição, que diz que é crime. A liberdade tem limites, e o limite é a responsabilidade sobre o que você faz.”
O movimento “escola sem partido” também contribui para o comportamento que a sociedade testemunha hoje, segundo Angela. A polêmica ganhou espaço em 2015 e 2016 defendida por pais contrários ao que chamavam de “doutrinação ideológica” nas salas de aula. A ideia inicial era proibir professores de manifestarem posicionamento político, ideológico e de gênero junto aos seus alunos.
O projeto entrou em discussão no Congresso Nacional, mas acabou arquivado em 2018. Para a educadora da Unicamp, ficaram sequelas da falta de profundidade sobre temas históricos, e outros, que passou a ser vista em algumas salas de aula.
“Nos últimos anos, educadores foram muito tolidos pela ideologia do ‘escola sem partido’. Muitas aprendizagens que poderiam ter acontecido na escola não aconteceram. Você tem jovens que não sabem o que significou o nazismo, não entendem a profundidade do racismo, desde o sequestro de negros ao desfavorecimento de negros hoje. Essas pessoas vão repetir coisas e não têm noção do que estão dizendo. A ignorância é parceira dessas manifestações criminosas”.
No caso de Valinhos, que segue em investigação pelas autoridades policiais, o grupo de WhatsApp de alunos reuniu mensagens com referências a ditadores, como o nazista Adolf Hitler e o fascista italiano Benito Mussolini. A conversa transitou entre mensagens racistas, machistas, gordofóbicas e xenofóbicas. A denúncia foi feita por um estudante negro de 15 anos.
“Esses meninos por meio de um WhatsApp expressam racismo e apologia ao nazismo, e é preciso que a sociedade entenda que essas duas coisas são crimes previstos na Constituição Brasileira. É preciso entender a gravidade disso, para não tratar como uma brincadeira inadequada de um bando de estudantes. Não. Eles cometeram crime. Num nível verbal, mas, sim, é crime”, destaca Angela Soligo.
Mais casos pelo Brasil
Recentemente, na região Sul do país, uma professora foi afastada por suspeita de injúria racial após uma aluna negra dizer ter ouvido dela “preta sebosa e encardida”, e um professor está sendo investigado depois de se declarar “fã de Hitler” e dizer que “sempre quis ser nazista”.
Em SP, na última semana, uma professora negra contou que sofreu ofensas racistas e encontrou uma suástica em uma carteira da sala de aula. A palavra “macaca” estava escrita no lugar do seu nome na lista de presença de uma turma em uma escola municipal na Zona Sul de São Paulo.
“É claro que esse momento de polarização favorece essas coisas que são exceção acontecerem. É preciso entender que isso não acontece do nada. Há pessoas de extrema direita que têm se sentido à vontade de expressar o racismo e suas fobias sociais”, diz a educadora da Unicamp.
Medidas punitivas x reeducar
Angela defende que medidas punitivas, como a expulsão de alunos da escola e o afastamento de professores, são necessárias, uma vez que a aparente impunidade em relação a esses acontecimentos só aumenta a chance de eles se repetirem. No entanto, não é suficiente tirar um aluno ou um professor da sala de aula, é preciso ir mais a fundo.
“Se eles fizeram nesse ambiente, é porque de alguma maneira eles se sentiram à vontade para fazer. Agora, precisa ter a discussão interna sobre esses assuntos, fazer uma formação, problematizar. Por que o racismo é crime? Por que o nazismo é crime? O que isso representa na nossa sociedade? [Explicar] que o racismo mata”.
“A base da escola é educativa, é problematizar, fazer refletir, trabalhar com filmes, com estudos de caso, notícias de jornal. E fazer isso relacionando com o conhecimento escolar. Eles têm disciplinas de história, geografia, filosofia. Tem muita coisa para aprender a partir disso”, completa.
Estabelecer o diálogo com os pais dos estudantes envolvidos com essas ocorrências também é algo necessário segundo a educadora.
“Isso [discriminação] veio de algum lugar, também dos meios de comunicação, internet, mas também é preciso fazer um diálogo nessas famílias. Com as dos meninos expulsos [no Porto Seguro] e com as de todos. Fazer um trabalho de cooperação para que escola e família atuem juntas no combate a essas formas criminosas de pensar o outro e se expressar em relação ao outro”.
“Creio que a decisão da expulsão não foi impensada, mas responsável. E, agora, a tarefa da escola é no dia a dia, no cotidiano. Não deixar que as pessoas pensem que eles se foram e está tudo bem. Provavelmente não responderão criminalmente, mas é preciso conversar com as famílias desses meninos expulsos para não gerar a vitimização deles”, acrescenta .
O caso de Valinhos está em investigação na Polícia Civil com encaminhamento ao Juizado da Infância e Juventude.
Em nota, o Colégio Porto Seguro disse que “reforçará suas práticas antirracistas, de conscientização e respeito à diversidade, em todos os câmpus, abordando o assunto de forma ainda mais contundente em suas pautas cotidianas, com iniciativas envolvendo a comunidade escolar”.
“É importante para aquele menino e aquela menina negros que foram humilhados sentirem que a escola fez alguma coisa e se colocou ao lado deles. Para todas as crianças jovens negras saberem que têm o direito de denunciar e serem protegidas”.
‘É preciso ter direito de falar sobre isso’
Angela reforça que o movimento “escola sem partido” deixou muitos professores perdidos. Diante dos últimos acontecimentos, precisam levar a discussão desses temas históricos de maneira mais enfática para a sala de aula. “É preciso ter direito de falar sobre isso”, afirma.
“Trabalhar com filmes, curtas, tem tantos bons para fazer a discussão. A linguagem do cinema cria engajamento, sentimentos em relação ao tema. Não silenciar jamais diante de uma atitude racista, ou discriminatória, de um estudante em relação ao outro. Viu uma risadinha, um apelido, chama para a discussão. Não humilha publicamente, mas chama o estudante que cometeu. Trazer a reflexão, nunca silenciar”.
Ela destaca que é missão da escola ajudar crianças e jovens a entender como pensar o Brasil de outra forma. Entender as violências inúmeras que estão presentes no cotidiano, praticadas não só por ladrões e agressores, mas por vizinhos, familiares e colegas de sala de aula.
“O silêncio da escola é terreno para o crescimento da violência escolar. Não silenciar. Dioalogar. Isso é fundamental, trazer para o diálogo e para a reflexão”.